Jane Eyre pode não ser a mais bela das mulheres nem a mais dotada financeira e artisticamente, mas é rica em “dons morais” (Saint-John) e portadora de um encanto que desperta a reação mais desejada pelo sexo feminino: “Nunca encontrei nenhuma igual a si” (Mr Rochester).Órfã de pai e mãe ainda bebé, a pequena é entregue aos cuidados do tio materno, que pertencia à alta sociedade. Extremoso, o irmão da mãe vela por ela mais do que pelos próprios filhos, mas adoece. Jane é só e mal pode esperar para entrar num colégio interno, a única escapatória possível aos maus tratos infligidos pela tia-madrasta e pelo primo.
No entanto, é colocada numa instituição de caridade, designada Lowood, onde um excesso de disciplina reprime os naturais ímpetos infantis, e um contido regime alimentar favorece a proliferação de tifo, surto ao qual Jane escapa, apesar da sua fraca compleição física.
Há, contudo, uma “Miss Honey” que traz alegria ao cinzento “reformatório”. Miss Temple – tal era o seu nome – “tinha sempre uma tal serenidade na expressão, uma tal majestade no porte, uma tal propriedade na linguagem, que impedia toda a exaltação: o que quer que fosse tolhia em nós o prazer de a ouvir”.
Jane procura ser a aprendiz perfeita para ganhar o seu apreço e, sagaz como era, acaba por conquistar um lugar na primeira fila. Aos 16 anos, é já mestra, seguindo os passos da sua mentora. Um nefando casamento, porém, leva-a para longe, e Jane já nada tem a prendê-la àquela mansão, que, apesar da nova administração, bem mais benevolente, continua a exaurir os “miasmas pestilenciais” que dificilmente se apagarão da sua memória. Afinal, não tinham eles ceifado a vida da sua grande e única companheira, Helen? Esta fora uma aluna incompreendida, por ser desastrada e “cabeça no ar”, tendo, por isso, sido severamente punida pela maioria das mestras. Oh, mas se a tivessem conhecido realmente, teriam visto o seu “coração transbordante, vigoroso e rico”, fonte de uma “profunda eloquência”, e a sua sede de “viver num curto instante tanto quanto é dado viver-se numa longa vida”!
O destino conduz a protagonista a uma cidade consideravelmente mais próxima da capital, Morton, e, em particular, a Thornfield Hall (o nome não engana: aquela casa é um terreno que cedo se revelará fértil em espinhos, e dos mais aguçados – os de um amor avassalador, de tão forte e impossível).
Jane consegue o lugar de precetora de uma menina coquette, Adèle. É acolhida calorosamente, por Mrs. Fairfax, a governanta… Estranho caso! Quem seria, então, o seu amo ou a sua patroa? Seria indelicado encetar um interrogatório logo ao primeiro contacto, mas se Maomé não vai à montanha… Com efeito, não demorará até a resposta vir ter com Jane, montada num cavalo…
O Sol já se pusera, e a jovem de dezoito anos ia a Hay, aos correios, quando um D’Artagnan se despenha a poucos metros dela. Como boa cristã, Jane oferece os seus préstimos. O misterioso cavaleiro acaba por aceitar esse ombro amigo, pois sofrera uma entorse, e dele jamais saberá prescindir.
Eis o retrato do “seu cavaleiro”: “espessas sobrancelhas, negras como carvão, e a fronte quadrada, que os cabelos penteados horizontalmente reforçavam”; “o nariz, nitidamente recortado, mais vistoso que bonito, e as narinas palpitantes, indício de um caráter violento; a boca era dura e o queixo e a maxila possantes”; “a estrutura maciça”, que “se harmonizava debaixo do ponto de vista atlético, mas, em todo o caso, nem imponente nem graciosa”.
Se todas as noites ele a procura, instalado na sua biblioteca, não menos ela anseia por ouvir a palavra de ordem, entregue impreterivelmente por Mrs. Fairfax: “Mr Rochester terá muito prazer em que a menina tome o chá com ele no salão”. Oh, o bálsamo que é ter o amor de uma jovem, quando se traz no rosto os estigmas de uma já longa vida! Ela põe um freio aos vícios com que aturdia o remorso que o consumia, e nessa atmosfera jovial, simples e sincera, ele encontra a vontade de se “purificar” e de retomar uma (co)existência de cristal. “Para mim, é uma felicidade conversar assim consigo, pois sinto que não posso macular a sua alma, embora haja em si o poder de renovar a minha.”
Mas, ah, a sorte nunca está do lado de uma jovem sem dote! Assim pensava, tomando já por certa a sua má estrela quando o protótipo da mulher fatal se intromete no seu caminho.
“Todo o juízo é ter de vez perdido
Julgando, enfim, justa tua esp’rança…
Como pôde, Sr. Cupido, – e tu,
Deus d’amor, haveres permitido! –
Malfadar a alma d’uma criança?
Fazer-me amá-lo sem o poder!
Oh, que ignóbil sofisma!
Compraz-se com o meu doer?
Só visto por esse prisma…”
Até que uma “sibila” a aconselha a manifestar os seus sentimentos ao objeto do seu amor; está a essa pequena distância de realizar o seu desejo. E é mesmo verdade!, é a eleita de Mr Rochester e com ele se casará… mas não para já. A revelação da existência de uma “louca” com a qual o futuro marido está comprometido é, de todos, o maior espinho que naquele campo de alegrias e de agruras lhe perfura o coração. Se até ali tudo tinha tolerado estoicamente, desta feita, não encontra nenhuma outra saída que não a da partida.
Nunca na sua ainda curta, mas já experimentada vida (“Se as suas feições são de criança, a expressão indica mais idade”) fora tão desgraçada. Ao fim de três dias de agonia e de total desamparo, tem a vida por um fio. Se havia pecados pela parte do seu amo a expiar, ele que estava prestes a cometer o crime de se casar sabendo estar já tomado, certamente ficaram saldados com esta maré de privações do seu “anjo da guarda”, como lhe chama.
Jane consegue arranjar forças para chegar até uma casa num bosque (Moor House) e implorar por misericórdia à mulher rude que lhe abre a porta, para a fechar de seguida. Mas nisto se esgotam, e o corpo da pequena, leve como uma pena, desfalece sobre a lama, aparentemente morto. Não, também não é este o fim da história!
Depois de por tanto passar, os prémios começam, finalmente, a surgir: a descoberta de família de sangue que a retira à solidão, a herança de uma pequena fortuna que a arrebata da indigência e a audição de um chamamento do seu Amo(r) – prenúncio de estar já o caminho livre para a consagração na Terra da sua metafísica união -, que lhe devolve a Alegria.
Jane não foi, não obstante, a única a ser maltratada pela vida; Mr Rochester, depois de uma incessante, mas infrutífera busca pela sua “queridinha”, está cego e maneta. O infortúnio deu-se no incêndio provocado pela “louca”, que acaba por nele morrer, ao atirar-se do telhado da casa em chamas. O marido, que se sentia responsável pela sua vida, ainda tenta salvá-la, mas não chega a tempo, não escapando, ademais, ileso de uma exposição demasiado prolongada ao fogo.
“Estava no quarto sentado ao pé da janela aberta: apaziguava-me sentir o ar embalsamado da noite, apesar de só um halo luminoso me revelar a presença da Lua. Desejava-te, Jane, Jane, oh! desejava-te com a minha alma e com a minha carne! Perguntei a Deus, com uma angústia misturada de humildade, se eu não fora já bastante amargurado, afligido, atormentado, se eu não poderia achar, por fim, a felicidade e a paz. Que eu merecera tudo quanto me acontecera, reconhecia-o, mas suplicava-lhe que me fossem impostas mais provações e o alfa e ómega dos votos do meu coração fugiram-me involuntariamente dos lábios: Jane, Jane, Jane!”
É este apelo, lançado no auge do seu sofrimento, que Jane ouve, dentro de si, não perdendo mais tempo para correr para os braços do seu bem-amado. Mas nem por um segundo deixara de pensar nele, aquando da sua ausência: “Todo o meu coração lhe pertence e é consigo que sempre estará, ainda que o destino me afaste da sua presença”. Mesmo quando um jovem bem-apessoado, “universitário perfeito” e que reconhece nela um apóstolo a pede em casamento: “Deus e a natureza destinaram-na para mulher de um missionário. Não lhe deram encantos físicos, mas dons morais; é feita para o trabalho, não para o amor. É preciso que seja a mulher de um missionário, e sê-lo-á. Será a minha. Reclamo-a, não para meu prazer, mas para o serviço do meu Soberano”.
Edward mal consegue acreditar que aquela “voz pessoal, tão viva, tão graciosa e doce” que lhe sussurra é a da sua Jane. “Deve ser um sonho, um desses sonhos que tenho durante a noite, e em que a estreito nos braços, como agora, e sinto que me ama e me não quer deixar.” Uma vez crente na presença física da sua “fada”, transfere a sua incredulidade para o sentimento de amor bastante para que “consagre a vida a um miserável cego misantropo”.
“Quero [ficar consigo], a não ser que ponha alguma objeção a isso. Serei sua vizinha, sua enfermeira, sua governanta. Acho-o sozinho; serei a sua dama de companhia, ler-lhe-ei, passearei consigo, servi-lo-ei, serei para si os seus olhos e as mãos. (…) É uma dor de alma vê-lo; é uma dor de alma ver-lhe os olhos e essa cicatriz que o fogo lhe deixou na testa. O pior de tudo é o perigo que se corre de o amarmos de mais por tudo isto… (…) Ser sua mulher é para mim a maior felicidade que se pode ter na terra”, replica Jane.
“Junto dele não sentia receio nem embaraço pela minha vivacidade e alegria; estava perfeitamente à vontade, pois sabia que lhe agradava assim e que tudo quanto eu fazia parecia consolá-lo ou reanimá-lo. Deliciosa sensação! Trazia-me à superfície o que de melhor havia em mim. Diante dele vivia realmente, e ele também. Embora cego, os sorrisos brincavam-lhe nos lábios e as feições adoçavam-se-lhe e aqueciam”, contava, dez anos mais tarde.
“A nossa lua de mel vai brilhar toda a vida; os seus raios só se apagarão sobre o teu túmulo ou sobre o meu”, afirma Mr Rochester, e não se equivoca.
“Há dez anos que estou casada. Sei o que é viver inteiramente para aquele a quem mais amamos neste mundo. Sinto-me feliz, mais feliz do que é possível dizer por palavras, pois sinto tão completamente a vida de meu marido como ele a minha.
«Nenhuma mulher está tão próxima de seu marido como eu do meu, nenhuma é mais carne da sua carne, osso dos seus ossos. No convívio de Edward não sei o que é enfado; e ele também não sabe o que isso é no meu convívio; nunca nos cansamos de sentir os nossos corações bater-nos no peito. Eis porque estamos sempre juntos. Estarmos juntos é, para cada um de nós, estarmos tão livres como se estivéssemos sós e tão alegres como se rodeados de gente. Conversamos todo o dia. Falar é para nós uma forma mais animada de pensar. Tem toda a minha confiança: eu tenho toda a confiança dele; os nossos caráteres harmonizam-se matematicamente; o resultado é um acordo perfeito”.
Durante os dois primeiros anos de casados, Edward esteve ainda cego, e Jane era o seu “guia” e o seu “amparo”. “Amava-me tanto que não hesitava beneficiar do meu auxílio, e sentia que eu o amava com tanta ternura que para mim ajudá-lo era, no fundo, o meu maior desejo.”
Um milagre, contudo, opera-se e Mr. Rochester recupera a visão de um olho, a tempo de assistir ao nascimento do primeiro filho, que os seus “negros, grandes e brilhantes” olhos “de outros tempos” herdou.
Jane Eyre é um romance escrito por Charlotte Brontë e publicado em 1847 sob o título original Jane Eyre: An Autobiography, por sua vez editado por um(a) tal de Currer Bell (pseudónimo da escritora). A obra é considerada um clássico, tendo trazido maior verosimilhança ao romance Vitoriano, através dos seus retratos realistas do espaço psicológico da mulher, realçando as suas lutas contra as suas paixões e a sua condição social.
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