“O Cemitério dos Prazeres não serve apenas para enterrar os mortos. Também segue propósitos culturais”
Falar da morte não é fácil… Alguns, “suspiram pela sua escuridão”, como dizia Bocage no soneto “Oh Retrato da Morte, oh Noite Amiga”; para outros, o mistério que a envolve e o ceticismo quanto à continuação da vida são causa de temor. Mas existirá realmente um muro que a separa da vida? Nos primeiros cemitérios criados no século XIX, nos Estados Unidos, os jazigos pontilhavam bonitos parques, com avenidas e recantos para se fazerem piqueniques nos dias de ócio. Eram os chamados parques memoriais: os primeiros parques públicos que existiram. Neles, as pessoas podiam desfrutar do ambiente sereno, enquanto se permitiam acostumar à ideia da morte, que era uma ameaça constante, naquelas épocas, devido às epidemias que tantas vidas ceifavam.
Em Portugal não é diferente. Num dos dois primeiros cemitérios construídos em Lisboa, com 12 hectares, em 1833, não havia muros entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, numa fase inicial. E eram costume os passeios domingueiros a Campo de Ourique, na altura, nada mais senão uma região limítrofe de Lisboa, onde urgiu criar um local afastado da urbe para depositar as vítimas de uma epidemia de cólera que deflagrou naquela década.
É lá, mais precisamente nos terrenos contíguos à ermida de Nossa Senhora dos Prazeres, à qual o cemitério onde estamos deve o nome, que repousam aristocratas e artistas, religiosos (como o confessor de D. Pedro IV, o Padre Marcos), comerciantes e professores. Há casais que continuam, de mãos dadas, à espera do dia do Juízo Final, “Sempre unidos”, lê-se num frontão. Outros há que, tendo podido apenas viver um amor platónico, os vivos quiseram aproximar naquele lugar, talvez tarde de mais: falo de Fernando Pessoa, que ali esteve até aos anos 80, no jazigo que partilhava com a avó, Dionísia Seabra Pessoa, altura em que foi transladado para o Mosteiro de Belém; e de Ofélia Queiroz, que se encontrava no cemitério do Alto de S. João, até 2016.
Hoje, os muros fazem-se duplamente necessários ante a agitação exterior, que contrasta com a serenidade propícia à reflexão do interior. Mas foi essencialmente por questões sanitárias que eles se ergueram. Causas que têm em comum o desrespeito – através da deposição de dejetos – do ser humano por esses locais de culto, por sua vez, de rememoração, de reconexão; quem não ama, não estima. E quantas histórias grava cada sepultura! As histórias de cada família; as histórias de uma época. E a arte! Desde o neoclássico à Art Nouveau, passando pelo neogótico, pelo Romantismo e pela arte popular portuguesa, o Cemitério dos Prazeres é um museu ao ar livre, do qual constam obras de nomes maiores da arquitetura e da escultura portuguesa, e não só, como Rafael Bordalo Pinheiro e Luigi Manini (este último responsável pela Quinta da Regaleira, em Sintra, e pelo Palácio-Hotel do Bussaco).
“Este cemitério é, de facto, baseado em Père-Lachaise.” Quem o diz é Gisela Monteiro, mestranda em História da Arte na FCSH NOVA e investigadora na Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa. Há 15 anos que “os mortos lhe dão que fazer”. “O que eu faço é investigar os cemitérios, as suas histórias, as histórias das pessoas que cá estão enterradas e de quem cá trabalhou, tentar desvendar ao máximo os motivos que levaram as pessoas a construir o jazigo, porquê – são quase sempre jazigos para filhos, é um bocadinho triste, mas é de facto isso que temos constatado. E depois escrevo artigos, faço visitas e tento divulgar ao máximo este nosso trabalho”, conta.

“O turismo cemiterial é uma forma de turismo cultural; não é dark tourism!”
Com efeito, hoje, há muitas pessoas que se interessam por estes espaços, incluindo-os nas suas visitas turísticas. Franceses, ingleses, a maioria maduros, mas também jovens. Como eu, perdem-se pelas ruas sem fim, qual delas a mais imponente. Mas há também quem tenha a sorte de ter visitas guiadas por estes espaços onde tantas rotas se cruzam. No Cemitério dos Prazeres, são mais de dez, que foram criadas nos anos 1990: os Grandes Homens (inclui nomes, masculinos e femininos, como José Malhoa, Jacinto Prado Coelho, Eduardo Brasão, Columbano Bordalo Pinheiro, Cesário Verde, Sousa Viterbo, Rafael Bordalo Pinheiro, entre outros), os Símbolos Profissionais, Flores de Pedra, Símbolos Fúnebres, Maçons Ilustres ou ainda um percurso com apenas um ponto, o Jazigo Palmela. Este é “o maior jazigo privado da Europa, e um dos locais onde está, em Portugal, uma das únicas peças de [Antonio] Canova, que é dos melhores escultores do neoclássico italiano”, explica Gisela Monteiro.
Desde aquela época que a Câmara Municipal de Lisboa realiza visitas guiadas aos seus cemitérios. “O Cemitério dos Prazeres não serve apenas para enterrar os mortos. Também segue propósitos culturais”, afirma a historiadora. Nos últimos anos, tem havido uma visita guiada por um desses sete cemitérios públicos de Lisboa (que totalizam 15 mil jazigos) praticamente todos os fins de semana. E “esgotam rapidamente!”, alerta a historiadora, visivelmente satisfeita. Na última visita guiada que orientou, a 30 de novembro, “Figuras forenses”, houve uma sessão extra, que também esgotou: nesse dia, contaram-se em mais de setenta os visitantes do Cemitério dos Prazeres. Ao longo do ano, são milhares os participantes nestas atividades, sem esquecer a Semana Cultural dos Cemitérios, em outubro, que conta com a participação de outras câmaras, como a de Loures, Vila Franca de Xira, Setúbal, Palmela, estando as portas abertas a mais parcerias. Nesta semana, realizam-se visitas guiadas de noite e visitas ao interior de jazigos, para apreciar os vitrais, as fotografias de época e demais recordações deixadas pelos entes queridos ali encapsuladas. Há, inclusive, visitas direcionadas ao público infantil.
Contudo, “o que hoje chamamos de turismo cemiterial não é algo novo”, salienta Gisela Monteiro, que alerta para o facto de este ser “um tipo de turismo cultural, e não de dark tourism”, como por vezes é dito. Já nos anos 20 do século XX, mais concretamente em 1923, a Biblioteca Nacional publicava guias do turismo em Portugal, que promoviam, entre outros, visitas a vários cemitérios, incluindo, claro está, o dos Prazeres. “Os cemitérios eram um espaço social. E daí também a necessidade de mostrar o lugar em que se estava na sociedade, escolhendo ruas com maior exposição. Não é por acaso que os artistas dramáticos ou o Carvalho Monteiro (dono da Quinta da Regaleira) estão na rua dianteira ao portão principal”, continua.
A propósito deste último, a investigadora contou que fez uma descoberta cuja revelação está para breve, no Boletim Cultural dos Cemitérios de Lisboa (que pode ser encontrado na plataforma Issuu e no site do município de Lisboa). “Descobrimos um mistério fantástico: aquela parte de cima [o caixão de pedra no templo que se ergue no jazigo] era o jazigo do pai [de Carvalho Monteiro]”, deixa entrever.
Gisela Monteiro também publicou outro artigo inédito, intitulado “Jazigo Particular N.º 4099: A Última Morada de Rafael Bordalo Pinheiro”. Nele revela que o jazigo onde Rafael Bordalo Pinheiro está sepultado, nos Prazeres, e que pertence aos Viscondes de Faro e Oliveira, foi construído para sepultar a filha bebé, de um ano e meio. É igualmente confirmada a hipótese de ser o ceramista o autor do desenho do jazigo, cuja aguarela pode ser vista no seu museu, no Campo Grande. “Foi a partir dessa aguarela que fizemos parte do trabalho, apesar de depois ele ter feito algumas alterações”, conta Gisela. “O jazigo é do estilo neomanuelino. Tem a ver com aquilo que estava a fazer no pós-Ultimato inglês, principalmente nas suas cerâmicas. E uma das coisas que fizemos foi a comparação dos elementos do jazigo com os elementos das cerâmicas, existindo, de facto, correlações muito interessantes com peças específicas, como o caso da Jarrinha de Sousa Viterbo (que não sabemos onde é que está, provavelmente com os seus descendentes), e com a Talha Manuelina, aquela jarra enorme que foi comprada pelo rei D. Carlos.” Mas os indícios não ficam por aí: “Na porta do jazigo há uma faixa exatamente igual à que está na porta da sacristia da Igreja de Nossa Senhora do Pópulo, nas Caldas da Rainha (onde o ceramista viveu durante vários anos)”.
Há ainda a assinalar a particularidade da pinha no topo do jazigo. “A pinha é um símbolo de proteção infantil, e, como ele não usava praticamente pinhas nos seus trabalhos, acho que escolheu pô-la ali como símbolo de proteção da bebé”, explica. Bordalo Pinheiro “não assinou o jazigo, mas deixou a sua assinatura simbólica, com duas rãs nos acrotérios (cantos)”. “A rã é um animal que não aparece nos cemitérios, porque tem muito má fama na Bíblia – é uma das pragas do Egito. Mas aqui tem todo o sentido porque é a assinatura”, contou ainda. “Os arquitetos de qualidade que estavam a trabalhar fora do cemitério também trabalhavam para dentro do cemitério”, sintetiza Gisela Monteiro.
A próxima visita será revelada no dia 25 deste mês, por email, aos subscritores da newsletter da Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara de Lisboa. “É possível que haja alguém que sorria desdenhosamente do amor a estas velharias e que nos responda que fora melhor tratar dos vivos e deixar os mortos. A esses responderemos que a nação que perdeu o culto dos seus antepassados não pode ter aspirações no futuro.” (Sousa Viterbo)
Joana Cavaco, dezembro de 2024


