Joana Cavaco

Joana Cavaco

Jornalista, explicadora e atriz.

Reportagem

“O Cemitério dos Prazeres não serve apenas para enterrar os mortos. Também segue propósitos culturais” Falar da morte não é fácil… Alguns, “suspiram pela sua escuridão”, como dizia Bocage no soneto “Oh Retrato da Morte, oh Noite Amiga”; para outros, o mistério que a envolve e o ceticismo quanto à continuação da vida são causa de temor. Mas existirá realmente um muro que a separa da vida? Nos primeiros cemitérios criados no século XIX, nos Estados Unidos, os jazigos pontilhavam bonitos parques, com avenidas e recantos para se fazerem piqueniques nos dias de ócio. Eram os chamados parques memoriais: os primeiros parques públicos que existiram. Neles, as pessoas podiam desfrutar do ambiente sereno, enquanto se permitiam acostumar à ideia da morte, que era uma ameaça constante, naquelas épocas, devido às epidemias que tantas vidas ceifavam.  Em Portugal não é diferente. Num dos dois primeiros cemitérios construídos em Lisboa, com 12 hectares, em 1833, não havia muros entre o mundo dos vivos e o mundo dos mortos, numa fase inicial. E eram costume os passeios domingueiros a Campo de Ourique, na altura, nada mais senão uma região limítrofe de Lisboa, onde urgiu criar um local afastado da urbe para depositar as vítimas de uma epidemia de cólera que deflagrou naquela década. É lá, mais precisamente nos terrenos contíguos à ermida de Nossa Senhora dos Prazeres, à qual o cemitério onde estamos deve o nome, que repousam aristocratas e artistas, religiosos (como o confessor de D. Pedro IV, o Padre Marcos), comerciantes e professores. Há casais que continuam, de mãos dadas, à espera do dia do Juízo Final, “Sempre unidos”, lê-se num frontão. Outros há que, tendo podido apenas viver um amor platónico, os vivos quiseram aproximar naquele lugar, talvez tarde de mais: falo de Fernando Pessoa, que ali esteve até aos anos 80, no jazigo que partilhava com a avó, Dionísia Seabra Pessoa, altura em que foi transladado para o Mosteiro de Belém; e de Ofélia Queiroz, que se encontrava no cemitério do Alto de S. João, até 2016. Hoje, os muros fazem-se duplamente necessários ante a agitação exterior, que contrasta com a serenidade propícia à reflexão do interior. Mas foi essencialmente por questões sanitárias que eles se ergueram. Causas que têm em comum o desrespeito – através da deposição de dejetos – do ser humano por esses locais de culto, por sua vez, de rememoração, de reconexão; quem não ama, não estima. E quantas histórias grava cada sepultura! As histórias de cada família; as histórias de uma época. E a arte! Desde o neoclássico à Art Nouveau, passando pelo neogótico, pelo Romantismo e pela arte popular portuguesa, o Cemitério dos Prazeres é um museu ao ar livre, do qual constam obras de nomes maiores da arquitetura e da escultura portuguesa, e não só, como Rafael Bordalo Pinheiro e Luigi Manini (este último responsável pela Quinta da Regaleira, em Sintra, e pelo Palácio-Hotel do Bussaco). “Este cemitério é, de facto, baseado em Père-Lachaise.” Quem o diz é Gisela Monteiro, mestranda em História da Arte na FCSH NOVA e investigadora na Divisão de Gestão Cemiterial da Câmara Municipal de Lisboa. Há 15 anos que “os mortos lhe dão que fazer”. “O que eu faço é investigar os cemitérios, as suas histórias, as histórias das pessoas que cá estão enterradas e de quem cá trabalhou, tentar desvendar ao máximo os motivos que levaram as pessoas a construir o jazigo, porquê – são quase sempre jazigos para filhos, é um bocadinho triste, mas é de facto isso que temos constatado. E depois escrevo artigos, faço visitas e tento divulgar ao máximo este nosso trabalho”, conta. “O turismo cemiterial é uma forma de turismo cultural; não é dark tourism!” Com efeito, hoje, há muitas pessoas que se interessam por estes espaços, incluindo-os nas suas visitas turísticas. Franceses, ingleses, a maioria maduros, mas também jovens. Como eu, perdem-se pelas ruas sem fim, qual delas a mais imponente. Mas há também quem tenha a sorte de ter visitas guiadas por estes espaços onde tantas rotas se cruzam. No Cemitério dos Prazeres, são mais de dez, que foram criadas nos anos 1990: os Grandes Homens (inclui nomes, masculinos e femininos, como José Malhoa, Jacinto Prado Coelho, Eduardo Brasão, Columbano Bordalo Pinheiro, Cesário Verde, Sousa Viterbo, Rafael Bordalo Pinheiro, entre outros), os Símbolos Profissionais, Flores de Pedra, Símbolos Fúnebres, Maçons Ilustres ou ainda um percurso com apenas um ponto, o Jazigo Palmela. Este é “o maior jazigo privado da Europa, e um dos locais onde está, em Portugal, uma das únicas peças de [Antonio] Canova, que é dos melhores escultores do neoclássico italiano”, explica Gisela Monteiro. Desde aquela época que a Câmara Municipal de Lisboa realiza visitas guiadas aos seus cemitérios. “O Cemitério dos Prazeres não serve apenas para enterrar os mortos. Também segue propósitos culturais”, afirma a historiadora. Nos últimos anos, tem havido uma visita guiada por um desses sete cemitérios públicos de Lisboa (que totalizam 15 mil jazigos) praticamente todos os fins de semana. E “esgotam rapidamente!”, alerta a historiadora, visivelmente satisfeita. Na última visita guiada que orientou, a 30 de novembro, “Figuras forenses”, houve uma sessão extra, que também esgotou: nesse dia, contaram-se em mais de setenta os visitantes do Cemitério dos Prazeres. Ao longo do ano, são milhares os participantes nestas atividades, sem esquecer a Semana Cultural dos Cemitérios, em outubro, que conta com a participação de outras câmaras, como a de Loures, Vila Franca de Xira, Setúbal, Palmela, estando as portas abertas a mais parcerias. Nesta semana, realizam-se visitas guiadas de noite e visitas ao interior de jazigos, para apreciar os vitrais, as fotografias de época e demais recordações deixadas pelos entes queridos ali encapsuladas. Há, inclusive, visitas direcionadas ao público infantil. Contudo, “o que hoje chamamos de turismo cemiterial não é algo novo”, salienta Gisela Monteiro, que alerta para o facto de este ser “um tipo de turismo cultural, e não de dark tourism”, como por vezes é dito. Já nos anos 20 do século XX, mais concretamente em 1923, a Biblioteca Nacional publicava guias do

Jane Eyre

Jane Eyre pode não ser a mais bela das mulheres nem a mais dotada financeira e artisticamente, mas é rica em “dons morais” (Saint-John) e portadora de um encanto que desperta a reação mais desejada pelo sexo feminino: “Nunca encontrei nenhuma igual a si” (Mr Rochester).Órfã de pai e mãe ainda bebé, a pequena é entregue aos cuidados do tio materno, que pertencia à alta sociedade. Extremoso, o irmão da mãe vela por ela mais do que pelos próprios filhos, mas adoece. Jane é só e mal pode esperar para entrar num colégio interno, a única escapatória possível aos maus tratos infligidos pela tia-madrasta e pelo primo.No entanto, é colocada numa instituição de caridade, designada Lowood, onde um excesso de disciplina reprime os naturais ímpetos infantis, e um contido regime alimentar favorece a proliferação de tifo, surto ao qual Jane escapa, apesar da sua fraca compleição física.Há, contudo, uma “Miss Honey” que traz alegria ao cinzento “reformatório”. Miss Temple – tal era o seu nome – “tinha sempre uma tal serenidade na expressão, uma tal majestade no porte, uma tal propriedade na linguagem, que impedia toda a exaltação: o que quer que fosse tolhia em nós o prazer de a ouvir”.Jane procura ser a aprendiz perfeita para ganhar o seu apreço e, sagaz como era, acaba por conquistar um lugar na primeira fila. Aos 16 anos, é já mestra, seguindo os passos da sua mentora. Um nefando casamento, porém, leva-a para longe, e Jane já nada tem a prendê-la àquela mansão, que, apesar da nova administração, bem mais benevolente, continua a exaurir os “miasmas pestilenciais” que dificilmente se apagarão da sua memória. Afinal, não tinham eles ceifado a vida da sua grande e única companheira, Helen? Esta fora uma aluna incompreendida, por ser desastrada e “cabeça no ar”, tendo, por isso, sido severamente punida pela maioria das mestras. Oh, mas se a tivessem conhecido realmente, teriam visto o seu “coração transbordante, vigoroso e rico”, fonte de uma “profunda eloquência”, e a sua sede de “viver num curto instante tanto quanto é dado viver-se numa longa vida”!O destino conduz a protagonista a uma cidade consideravelmente mais próxima da capital, Morton, e, em particular, a Thornfield Hall (o nome não engana: aquela casa é um terreno que cedo se revelará fértil em espinhos, e dos mais aguçados – os de um amor avassalador, de tão forte e impossível).Jane consegue o lugar de precetora de uma menina coquette, Adèle. É acolhida calorosamente, por Mrs. Fairfax, a governanta… Estranho caso! Quem seria, então, o seu amo ou a sua patroa? Seria indelicado encetar um interrogatório logo ao primeiro contacto, mas se Maomé não vai à montanha… Com efeito, não demorará até a resposta vir ter com Jane, montada num cavalo…O Sol já se pusera, e a jovem de dezoito anos ia a Hay, aos correios, quando um D’Artagnan se despenha a poucos metros dela. Como boa cristã, Jane oferece os seus préstimos. O misterioso cavaleiro acaba por aceitar esse ombro amigo, pois sofrera uma entorse, e dele jamais saberá prescindir.Eis o retrato do “seu cavaleiro”: “espessas sobrancelhas, negras como carvão, e a fronte quadrada, que os cabelos penteados horizontalmente reforçavam”; “o nariz, nitidamente recortado, mais vistoso que bonito, e as narinas palpitantes, indício de um caráter violento; a boca era dura e o queixo e a maxila possantes”; “a estrutura maciça”, que “se harmonizava debaixo do ponto de vista atlético, mas, em todo o caso, nem imponente nem graciosa”.Se todas as noites ele a procura, instalado na sua biblioteca, não menos ela anseia por ouvir a palavra de ordem, entregue impreterivelmente por Mrs. Fairfax: “Mr Rochester terá muito prazer em que a menina tome o chá com ele no salão”. Oh, o bálsamo que é ter o amor de uma jovem, quando se traz no rosto os estigmas de uma já longa vida! Ela põe um freio aos vícios com que aturdia o remorso que o consumia, e nessa atmosfera jovial, simples e sincera, ele encontra a vontade de se “purificar” e de retomar uma (co)existência de cristal. “Para mim, é uma felicidade conversar assim consigo, pois sinto que não posso macular a sua alma, embora haja em si o poder de renovar a minha.”Mas, ah, a sorte nunca está do lado de uma jovem sem dote! Assim pensava, tomando já por certa a sua má estrela quando o protótipo da mulher fatal se intromete no seu caminho. “Todo o juízo é ter de vez perdidoJulgando, enfim, justa tua esp’rança…Como pôde, Sr. Cupido, – e tu,Deus d’amor, haveres permitido! -Malfadar a alma d’uma criança? Fazer-me amá-lo sem o poder!Oh, que ignóbil sofisma!Compraz-se com o meu doer?Só visto por esse prisma…” Até que uma “sibila” a aconselha a manifestar os seus sentimentos ao objeto do seu amor; está a essa pequena distância de realizar o seu desejo. E é mesmo verdade!, é a eleita de Mr Rochester e com ele se casará… mas não para já. A revelação da existência de uma “louca” com a qual o futuro marido está comprometido é, de todos, o maior espinho que naquele campo de alegrias e de agruras lhe perfura o coração. Se até ali tudo tinha tolerado estoicamente, desta feita, não encontra nenhuma outra saída que não a da partida.Nunca na sua ainda curta, mas já experimentada vida (“Se as suas feições são de criança, a expressão indica mais idade”) fora tão desgraçada. Ao fim de três dias de agonia e de total desamparo, tem a vida por um fio. Se havia pecados pela parte do seu amo a expiar, ele que estava prestes a cometer o crime de se casar sabendo estar já tomado, certamente ficaram saldados com esta maré de privações do seu “anjo da guarda”, como lhe chama.Jane consegue arranjar forças para chegar até uma casa num bosque (Moor House) e implorar por misericórdia à mulher rude que lhe abre a porta, para a fechar de seguida. Mas nisto se esgotam, e o corpo da pequena, leve como uma pena, desfalece sobre a lama, aparentemente morto.